Kid Thomas e os gatilhos

kidKid Thomas era o nome artístico de Louis Thomas Watts. Assim como suas músicas, sua vida também foi rápida. Fez a história. Tocou com  Muddy Waters, Elmore James e Bo Diddley. Ao fim dos anos 50, nas rasteira de Little Richard – que fazia sucesso naqueles anos de rock’n’roll primitivo e louco – lançou a música “Rockin’ This Joint To-Nite”.

Assim como na roleta russa, que geralmente não leva muita sorte ao jogador, a bala de Kid Thomas não vingou, deixando-o na sarjeta da calçada da fama. Sorte menor, à mesma época, teve outro roqueiro: Johnny Ace. Se a morte move e endossa o culto ao gênero, Ace girou o tambor da arma no camarim e achou rápido o azar. Ao mesmo tempo, Little Richard podia apertar o gatilho 2000 vezes seguidas, pois nada pararia o travesti de salto plataforma.

Mas como só os que sabem fazer bem o que fazem continuam fazendo-o, Kid Thomas continuou tocando nos bares de Los Angeles, vezes com a banda Tommy Louis and the Rythm e vezes com os Tommy Louis and the Versatiles. Ainda lançou algumas músicas nos anos 60. Pra ganhar a vida fora do palco, trabalhava aparando a grama de jardins.

Em 69, enquanto dirigia seu caminhão, Kid Thomas atropelou e matou um garoto. Acabou preso, mas foi solto após o julgamento por falta de provas. Porém, fora do tribunal, o pai do menino aguardava ansioso pelo músico – fazendo uma bala acertá-lo finalmente. Kid morreu em 1970.

70 reais a história

escultura

 

Como ganhar uma merreca no domingo, ouvir piadas de humor negro e divagar sobre deficientes mentais

Ficar quebrado é coisa do diabo. Você aceita o que vier, faz entrevista pra ser assessor até de parapsicólogo charlatão. “É pessoal, quero repercussão, só pago vocês se o SBT vier aqui gravar minhas hipnoses com o Latino”. “Cara, com licença, mas, posso ir embora?”. “Tudo bem”, respondeu no ato. No fim das contas acabei vendendo por um real em um sebo o livro que ele distribuiu pros candidatos. O cara do sebo me disse que estavam quase dando o livro na editora por dois reais. Sai no lucro, né?

Mas embora eu tenha perdido meu tempo com o hipnólogo safado e reconhecido internacionalmente, consegui um bico pro final de semana. Aplicar provas de um concurso da prefeitura numa escola pública perto de casa. Fui lá, seis da matina quase em ponto. Depois da reunião recebi meu crachá e minha função: “FISCAL VOLANTE”, ou seja, enquanto o pessoal aplicava as provas eu ficava no corredor levando e trazendo gente do banheiro, escoltando, e quando precisavam de algo como uma caneta ou um lápis, eu descia dois lances de escada e pegava.

Nunca tinha ganhado 70 reais por apenas um dia de trabalho. Lanchinho natural, refrigerante e bombom também ganhei. Mas o melhor foram as histórias que ouvi das professoras da escola. Elas estavam falando sobre crianças com DM (deficiência mental), e sobre como era difícil lidar com elas no meio dos outros alunos.

Uma das professoras tinha um jeito meio letárgico, rosto mole de argila. Resolvi apelidá-la de CARACANSADA, parodiando a personagem ANDRÉA CARACORTADA, de um filme do Almodóvar chamado Kika. CARACANSADA só falava nos tais “DMS”, era assim que ela se referia aos deficientes. A mulher dizia: “É muito difícil lidar com esses DMS, três deles detonam uma sala de 30”.

Eu só ouvia e dava algumas risadas amenas, enquanto isso, outra professora lembrava historinhas de amargar. “Tem um DM aqui na escola que fica quieto o tempo todo na sala. Aí pede pra ir ao banheiro e não volta. Vou lá buscar e pego ele atrás da porta, calado e encarando a parede. Eu digo, “vamos menino, sai daí”, “VOCÊ NÃO QUER QUE A TIA FIQUE NERVOSA, QUER?”. Parece que depois deste último aviso o menino acabava voltando pra sala com passos bem lentos, andando meio largadão.

“E outro então, dorme na sala e acorda todo mijado. Aí a gente tem que chamar a mãe pra levar embora”, lembrou uma outra. Mas o épico ficou por conta de CARACANSADA. Disse ela: “gente, um menino voltou do banheiro com um cheiro horrível, de cocô, sabe? Aí quando fui levar ele no banheiro vi que tinha passado fezes pelas paredes, pintou a parede toda”. Todos ficaram atônitos, mas ela nos acalmou: “CHAMAMOS A MÃE DO GAROTO PARA LIMPAR”. “Como assim a MÃE do garoto?”, disse a moça ao meu lado. “É, se a gente não chama pra limpar, ela não acredita que o filho PINTA A PAREDE DE MERDA, HAHAHAHAHA”.

Aí começou uma infinita variação de piadas e comentários. “O quê?? Pintava a parede de merda??”, “Isso mesmo, menina, um cheiro horrível!” “Hahaha, com diarréia só dá pra fazer isso, né? Imagina se ele cagasse duro, ia fazer esculturas, HAHAHA”. (Confesso que desta eu também ri). “O pior são os DMS disfarçados, tá cheio de psicopatinha enrustido nessa escola”.

Ao fim do trabalho, depois de subir e descer as escadas umas 500 vezes, peguei meu pagamento de Fiscal Volante e peguei o caminho da roça. Fiquei pensando sobre todas aquelas histórias e não sabia se ria ou chorava. Na verdade, eu não choraria por aquilo, mas deveria. Seria o melhor a ser feito. Não fui pra casa, fiquei caminhando e acabei no meio do Parque da Juventude. No meio de um gramado extenso, vi a escultura de uma criatura redonda com patas, que parecia estar vomitando. Na verdade, parecia uma merda gigante com três patas de aranha, vomitando mais um monte de cocozinhos na grama. Um pessoal tirava fotos ao lado…

O Pervertido

imageAs bocas abriam e fechavam, as bochechas borbulhando o vapor frio de Petrogrado. A pele avermelhada de Alina destoava da neve que cobria o rio Neva. Em pouco tempo, um monte de carne ali boiaria. Ao correr pelas florestas escuras que envolviam a cidade, a camponesa lembrou-se de deixar um bilhete na casa do mestre. Apesar do gelo ao redor, o papel embebia-se nas mãos suadas. Passou pelo portão e enfiou o recado por baixo da porta. Depois de um barulho estranho que veio de dentro, saiu correndo. Tinha medo de encarar os conhecidos olhos absurdos.

“Se alguém pudesse acabar com aquele desgraçado”, era o pensamento corrente da nobreza russa. E não somente queriam matá-lo – alguns pensavam mesmo em torturá-lo, prendê-lo como animal selvagem que era, comandá-lo como marionete: “Transforme o gelo do Neva em vodka!”; mas esse talvez fosse desejo não só dos ricos, mas de todas as classes.

Podia-se dizer que o mestre, ou o maldito, como alguns mais eufóricos referiam-se a ele, era uma espécie de pé-grande dos campos brancos de neve, guardados por revoadas de pássaros cinzentos e rodeados pelo ódio e violência daquela placa colossal e gélida chamada Rússia. Além da pobreza, além de toda a miséria que envolvia a nação, existia uma força obscura, um homem com um emaranhado de barba, olhos fundos e batas enormes; que sentava-se à raiz grossa de uma árvore, fumava seu cigarro enquanto os caracóis azuis refestelavam-se em volta do seu sorriso sádico. “Pobres russos, pobres deles…”.

Como toda sombra ininteligível que paira sobre pastagens muito sóbrias, com o ranço da ignorância despendendo-se a cada passo ou palavra de ordem, a conspiração contra o mestre teve início na taberna do Lyev – o gordo. Políticos, soldados de chumbo e religiosos faziam um tumulto sobre o espectro que rondava o império. Mas, fora isso, não tinham muitos motivos para se preocupar, a não ser com as peripécias do czar Nicolau II, conhecido como borra-botas e estrategista de final de semana, ocupando maior posto do país em plena Primeira Guerra Mundial.

O velho fofoqueiro corria entre as árvores secas, era um amigo do bruxo – pelo menos assim ele se intitulava. Passou por um vão enferrujado da cerca e colou a cabeça na janela do quarto. Tirado de seu sono pelo sexto sentido que só os mais perseguidos e odiados acabam desenvolvendo, o mestre sentou-se em sobressalto. Virou o pescoço de lado, viu o boneco de bochechas roxas respirando do lado de fora do vidro, coçou os pelos do rosto e entortou os lábios em desgosto. Roupas escuras de mulher dormiam ao seu lado, soltavam o cheiro da noite anterior. Ah, mas estava só. A prostituta, talvez com medo ou coisa que valha, tinha fugido pelada pelos bosques da madrugada, deixando-o ali em sono fundo. Estivesse talvez morta em alguma vala ou perdida ainda, caminhando a esmo. Enervado, urrou para o velho paspalho da janela:

– Nossa! Nem o frio mata agourentos! – disse Rasputin.
– Mestre! Mestre! É certo que não! Mas é certo também que às vezes a boa nova surge antes que vire uma maldição velha.
– Não faça comparações tão esdrúxulas.
– Não posso falar mais. Mas assim como nas histórias de nossos escritores, a morte espreita, mestre!
– Está enrolando para que eu lhe ofereça uma boa dose de bebida?
– Os olhos que tudo veem enxergaram a alma fria desse ancião.

O bruxo puxou o velho para dentro, pelos colarinhos. Vestiu-se com dificuldade, emitia grunhidos de cansaço. Acendeu um cigarro, caminhou encurvado para não bater a cabeça no teto. Esfumaçou até a cozinha. Sentou-se, puxando uma cadeira para o visitante. Serviu-se com uma dose e passou a garrafa. Sem brindar, os gargantas secas viraram juntos. O velho encarou o mestre. Fingiu não ter notado um brilho em suas pálpebras, mas todo seu corpo gelou mais ainda. Ao perceber o nervosismo do ancião, Rasputin virou-se de costas. A fumaça azul como cobras enfeitando os cabelos ensebados.

– Fraco. Pra que veio?
– Desculpe novamente, mestre. Mas venho lhe dizer, por Deus, que homens de poder tramavam contra você na taverna de Lyev – o obeso.
– Pois está atrasado, alguém já deixou cá um bilhete. Vocês parecem tolos, não podem simplesmente dizer as coisas, têm que fazer essa encenação! Deixar cartas, falar em enigmas!
– Espirituoso, mestre!
– Calado! Sabe que comigo nada podem, velho bêbado! Nada podem, tenho dito. Termine essa bebida longe de mim!
– Você precisa se esconder! O povo pede que…
– Não ouse falar pelos outros!

Sem paciência, Rasputin levantou-se. Encarou o velho de perto.

– Não! Pare, por favor!

Sozinho, o bruxo repetiu para si mesmo, na frente do espelho, que nada poderia lhe fazer mal. A criatura que o observava atrás do vidro rachado, por estranho que pareça, estava menos certa sobre aquilo. Rasputin levantava o punho cerrado, “vitória!”, mas a outra face, embora ainda remedasse seus movimentos com um pouco de atraso, não aprovava o que ouvia. Parecia querer dar-lhe um sinal, um aviso. Mas de nada iria adiantar. Confiar não era um costume do velho bruxo.

A noite caiu. Rasputin foi até o quintal, colheu algumas plantas. Ervas daninhas. Separou as folhas, lavou-as, passou-as pelo corpo. A porta bateu. Alguém tinha entrado.

– Mensageiro, estou desesperada, já sangra há meia hora.

A mulher encapuzada trazia um pacote no colo, colocou-o na mesa.

– Sabia que era você, doce czarina.
– Abra aqui, por favor.

Rasputin puxou o pano, revelando uma criança de olhar perdido. Do nariz, escorria uma listra de sangue, que se tornava mais densa a cada tentativa de respiração do bebê. Apanhou o pequeno, levantou-o acima da cabeça, tapou seus olhos com os dedos, disse-lhe algo ao pé d’ouvido e o devolveu às cobertas. Alexandra ajoelhou-se, beijou as pernas do bruxo agradecendo, enroscando os cabelos nos joelhos rotundos. Aos poucos deixou as lamúrias, sentiu a sua pele a envolvê-la. Um odor amargo espirrou.

O bebê, aninhado na mesa, sangue estancado, acenava para uma criatura invisível. Ria para algum ser imaginário enquanto a czarina guinchava. Urro final, ecos na vizinhança. Roupas de volta ao corpo, perfume camuflando a pele ardida.

– Mais uma vez, obrigado.
– Esse não será o último dos Romanov.

Para lá das embaixadas, que costumavam ficar juntas na capital, tramando especialmente contra ela, pensamentos de ingleses, franceses e de toda a raça de nobres russos rodavam no ar esperando a hora especial. Para a elite, a Rússia deveria ajudar no combate à Alemanha, mesmo com o seu famoso “rolo-compressor” já desdentado.

Ah, mas para eles não, para eles a dignidade duvidosa daqueles que morriam em batalhas não tinha tanta relevância, o importante era mais um bom gole de vinho – vodka era tão démodé nas alas imperiais – roupas cremosas adornando o corpo das damas e dos cavalheiros e os estrondosos bacanais. Era tanto sangue azul com sangue azul que já se havia perdido as contas dos hemofílicos e deficientes passando doenças reais de um para o outro, sem parar, para manter a hegemonia dos déspotas.

Uma mão tocou o ombro de Nicolau II quando ele comentou com o príncipe Félix Yussupov sobre o mal hálito e o cheiro pútrido de Rasputin. Àquela altura, adornado vigorosamente pela czarina e cercado por um séquito de fêmeas – que por vezes em troca de favores lhes levantavam as saias – o bruxo flanava tranquilamente entre os poderosos.

Rasputin, querubim sagrado da esposa do czar, mal intencionado em seus planos, continuava – junto ao seu protetorado – nomeando os mais sujos delinquentes para cargos importantes no império, afundando a Rússia com seu grupo de arruaceiros. Os excessos na administração acabaram percebidos, e somados à péssima situação do exército, foram objeto de repúdio dos mais importantes nobres, liderados por Yussupov.

Em pele de cordeiro, Rasputin podia ser charlatão, maníaco e sádico, mas sabia exatamente onde doía a dor dos pobres. Ah, sabia! Por mais que (“graças a Deus!”, ele pensava) isso não o afetasse, os genes da miséria que seus pais deram-lhe na aldeia de Pokrovskoie, aliados à sapiência acumulada somente por aqueles que crescem na labuta, transformavam-no em uma espécie de termômetro daquela placa de terra colossal, num catalisador místico das movimentações. Uma antena.

Quanto mais ele rondava a nobreza com sua barba sebosa e pés gigantescos, mais ódio essa casta tão asséptica dele tinha. Para o seu azar, a cortês conferência no bar do Lyev ganhava contornos cada vez mais reais. Até ele, certo de seu poder, estava ficando receoso. Recebia ligações, sorrisos maléficos, apertos de mão-mole ao redor dos palácios e apelos das mulheres, que satisfeitas chiavam-lhe segredos à orelha.

Mas parecia aquilo tudo um leve mau agouro, uma sujeirinha da qual podia se livrar com um golpe de mão. Caspa de barba. Quando mais novo, gostava de disputar braço-de-ferro com qualquer um que aparecesse nas tavernas onde passava as noites, e travando esta brincadeira consigo mesmo, o rosto branco, no fundo negro do espelho, sempre saía perdendo.

Enquanto a noite ainda se agigantava nos becos de Petrogrado, Rasputin escolhia a melhor roupa, bons perfumes para esconder a névoa malcheirosa que o mantinha indefectivelmente camponês. O céu chumbava. Vestiu a camisa cinza de margaridas e o casaco azul anil. Dividiu o cabelo, ensebando-o igual para os dois lados, espalmou a cara e ficou esperando Yussupov.

Tão apurado estava o plano para acabar com Rasputin que a festa falsa foi arquitetada no palácio, desenhada para atiçar-lhe os mais afoitos instintos. Contrataram duas cantoras para replicar o vozerio feminino e emular a voz de Irina Alexandrovna, esposa de Félix, a quem Rasputin queria conhecer mais intimamente. Além dos servos fazendo barulho de talheres e passos, o fonógrafo completava a trilha sonora. À chegada no palácio, foi deixado esperando em frente a um banquete. O príncipe remexeu nos enfeites do uniforme, sentou-se, puxou conversa. Pegou uma taça de vinho, ofereceu doces, empurrando-os ansiosamente ao convidado.

– Sabemos do seu gosto por vinho!
– Obrigado, prefiro conhecer Irina de estômago vazio.
– Não tão cedo, mestre. Sabe como são as mulheres.
– Sim, e como sei.

Por mais que os olhos de Rasputin vissem além do que os ineptos sempre conseguiam, um encontro com Irina era uma ideia tão deliciosa que o deixava rendido ao mais baixo instinto. Alheio à amargura, ergueu a taça de vinho com veneno e virou. Depois abocanhou a gelatina de romã, também especialmente condimentada. O olhar seco de Rasputin rodou um pouco, quase caiu rosto abaixo, vibrou, retornou vivo e diabólico. Voltou-se para o príncipe.

– Estupendo! Quem fez esses tem algo a ensinar às cozinheiras da czarina.

Assustado com a arrogância do místico, forte demais para o veneno azul-esverdeado, o príncipe subia e descia apressadamente as escadarias para ter com os conspiradores. Como dizer que substância alguma fazia mal àquele imundo? O príncipe já tinha assumido sua pluralidade sob os lençóis, mas tinha dificuldade em enfrentar sua impotência – e talvez a impotência de toda a Rússia perante Rasputin. Voltou ao andar de cima. Os oficiais já batiam palmas.

– Senhores, o desgraçado tem parte com o Diabo. Come e bebe como louco, e ainda vive!
– Pois vamos resolver isso à moda antiga – sugeriu um deles.

Incerto se a melhor saída era resolver tudo na bala, Yussupov desceu novamente e sentou-se à mesa do gigante, que já tinha acabado com duas garrafas de vinho e assoviava ébrio uma canção. A barba suja, inutilmente melada com o veneno mortal. Lambuzava-se com uma coxa de pernil. Após cuspir um osso no prato, questionou:

– E Irina?
– Ainda não está pronta.

Assoviou em resposta.

– Veja como Cristo está bonito na cruz, mensageiro.

Rasputin olhou o crucifixo na parede sem dar importância.

– Mestre! Pode fazer o sinal da cruz e uma oração?

Estranhando o pedido, o bruxo moveu os braços ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Algumas velas da mesa apagaram-se. Na penumbra, a fumaça apagava Rasputin, deixando-o menor, dissolvendo sua imponência. “Amém”. Yussupov cerrou o punho, levantou-se num pulo e sacou a arma. Cravou-lhe um tiro no peito. Rasputin tombou, a boca escapando uma mancha vermelha.

O grupo reuniu-se para resolver que fim daria ao corpo. Seria difícil cortá-lo. Ofereceram algumas moedas às cantoras e decidiram jogá-lo no rio Neva. Yussupov agachou-se para conferir mais uma vez a pulsação do gigante. Quando se virou, rindo aos comparsas, o bruxo pulou em suas costas, urrando. Suas mãos tremiam, fios de espuma esguichavam pela barba, a garganta rugindo seu nome de batismo:

– Félix! Félix! Vou contar à czarina!

Seguindo a confusão, os outros invadiram a sala e alvejaram Rasputin. Caiu monstruoso, mas levantou-se e correu. Os homens o perseguiram. Lá fora, no pátio encoberto de neve, finalmente não se mexia, estirado em gelo e sangue. Endiabrado, Yussupov pulou em cima dele, desferindo facadas e o estrangulando.

Caiu sem forças ao lado do corpo, rolou, olhou para trás. Todos estavam assustados. Bateu a neve do uniforme, chamou um dos seus cachorros, colocou a arma na boca do animal e estourou sua cabeça – só para o caso de alguém perguntar.
Enrolaram o corpo em uma coberta, amarraram e colocaram na carruagem. Foram até a ponte do Neva e arremessaram Rasputin numa fenda de gelo. O volume boiou, girou, mas não afundou.

– Diabos, nem mesmo o Neva quer o maldito.

Como um arrepio gelado que avaliamos como obra de uma corrente de vento, desvencilhando possibilidades de uma mão morta a nos acariciar, o corpo de Rasputin foi encontrado dois dias depois, há muitos metros do local onde foi atirado.
O rosto estava deformado. O sangue coagulado conseguira transformá-lo em algo ainda pior do que fora em vida. Um jovem que passava por perto estranhou, retirou o corpo duro do rio. “Ah! Aquelas mãos!”, berrava aos policiais. “Aquelas mãos estavam pro alto! Como livrou-se das cordas?”.

Depois dos tiros, das facadas, do estrangulamento, nas águas geladas do Neva, o bruxo sagrado ainda estava vivo. Vivo, respirando, pulsando, quiçá pensando. Quente, talvez, não tivesse sido o Neva a sua derradeira morada. Morreu algum tempo depois, afogado ou de hipotermia, o corpo flutuando pelo rio. O rosto pálido, enraizado pela barba e marcado pelo olhar fundo, ainda contrasta com o escuro da noite de São Petersburgo.

Assombra.